quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O ANJO

Passo por ele todos os dias e não resisto à paisagem...


« A estátua do Anjo de Sobreiras brilhou subitamente na noite fria. A luz branca que saiu do seu interior por poros que nunca se tinham pressentido, iluminou os passeios, as casas e os rios. Até o mar, mais ao longe. Uma luz fortíssima que fez desaparecer o vulto de onde provinha.
Contudo, ninguém das casas vizinhas se chegou às janelas ou os pescadores que estavam a entrar na barra depois da faina no mar, desviaram os olhos para o inesperado farol. Nem quem seguia de automóvel, a caminho de casa depois de uma noite de copos, ou os namorados que mais adiante confessariam a sua paixão junto às palmeiras do Passeio Alegre, ninguém se apercebeu da luz intensíssima que lhes devia ter iluminado o caminho. Assim tinha sido determinado. Ninguém viu. O milagre deu-se invisível, ao contrário do que acontecia normalmente. Os milagres eram sempre para serem vistos e comentados.
O Anjo começou então a mexer, as mãos caindo ao longo do corpo, o cabelo antes gelado, revolto agora com o vento que se fez sentir, a cabeça erguida e altiva rodando, os olhos vendo o mar a querer entrar no rio. E assim ficou o Anjo por momentos, o metal duro tornando-se lentamente matéria etérea.
Levantou-se, então, aquele que ali tinha permanecido de joelhos por muitos anos, e contemplou a escuridão do céu, as estrelas lá em cima, as casa pequeninas mais adiante. O seu vulto, quatro metros bem medidos, ergueu-se sobre as copas das árvores como um gigante, as suas asas em repouso, ainda mais altas que a sua cabeça. Desceu a seguir, do seu pedestal de pedra, e deu três passos até à beira do cais, três passos que fizeram estremecer o chão. Depois o seu vulto de luz ergueu-se e, pairando em cima do rio, suavemente, deixou-se cair até desaparecer, uma massa de luz afundando-se lentamente nas águas.
“Roubaram o anjo, o anjo já não está lá. Ladrões, ladrões. Isto está uma desgraça, roubam tudo, estragam tudo. Eu até rezava aquele anjinho, tão lindo que era, uma pena”. Ninguém soube explicar o que tinha acontecido à estátua. Muitos lamentaram, que aquele era o seu sítio favorito em toda a marginal do Douro, o local de muitos amores começados e muitos amores desatados. Um lugar mágico, diziam as mulheres da zona. “ Íamos lá, olhávamos para aquela carinha e vínhamos muito melhor para casa”.
A cidade nunca se viria a conformar com a perda da estátua. Anos depois uma réplica seria ali colocada naquela curva do rio, a partir de uma cópia em gesso que existia numa casa nobre da Foz, oferta da artista que idealizara o anjo a uns amigos queridos. Disseram depois os jornais que aquele novo anjo não tinha o fulgor do outro. Mas a devoção continuou.»


Este é o capitulo 11, um dos últimos, do livro Bianca e o Dragão de Beatriz Pacheco Pereira, ed.2006, com 18 ilustrações de Agostinho Santos,que considero verdadeiramente delicioso e que aconselho toda a gente a ler , sobretudo para quem adora o Porto, local onde decorre a acção . Na contra capa diz:
O Porto como cenário, uma Estátua na marginal do rio Douro, Anjos que visitam a cidade, um Dragão que violenta e destrói, uma casa na Rua da Restauração, uma Mulher, um Homem. As forças contraditórias da nossa Humanidade. A Vida, a Morte. E Deus que vigia e se diverte. Uma história tirada do Fantástico e da Imaginação.

1 comentário:

Unknown disse...

Uma linda história com certeza escrita com imenso carinho. Gostei imenso e fiquei super encantada com as maravilhas desta postagem!! Tudo de bom para ti,fica bem!!