« A estátua do Anjo de Sobreiras brilhou subitamente na noite fria. A luz branca que saiu do seu interior por poros que nunca se tinham pressentido, iluminou os passeios, as casas e os rios. Até o mar, mais ao longe. Uma luz fortíssima que fez desaparecer o vulto de onde provinha.
Contudo, ninguém das casas
vizinhas se chegou às janelas ou os pescadores que estavam a entrar na barra
depois da faina no mar, desviaram os olhos para o inesperado farol. Nem quem
seguia de automóvel, a caminho de casa depois de uma noite de copos, ou os
namorados que mais adiante confessariam a sua paixão junto às palmeiras do
Passeio Alegre, ninguém se apercebeu da luz intensíssima que lhes devia ter
iluminado o caminho. Assim tinha sido determinado. Ninguém viu. O milagre deu-se
invisível, ao contrário do que acontecia normalmente. Os milagres eram sempre
para serem vistos e comentados.
O Anjo começou então a mexer, as
mãos caindo ao longo do corpo, o cabelo antes gelado, revolto agora com o vento
que se fez sentir, a cabeça erguida e altiva rodando, os olhos vendo o mar a
querer entrar no rio. E assim ficou o Anjo por momentos, o metal duro
tornando-se lentamente matéria etérea.
Levantou-se, então, aquele que
ali tinha permanecido de joelhos por muitos anos, e contemplou a escuridão do
céu, as estrelas lá em cima, as casa pequeninas mais adiante. O seu vulto,
quatro metros bem medidos, ergueu-se sobre as copas das árvores como um
gigante, as suas asas em repouso, ainda mais altas que a sua cabeça. Desceu a
seguir, do seu pedestal de pedra, e deu três passos até à beira do cais, três
passos que fizeram estremecer o chão. Depois o seu vulto de luz ergueu-se e,
pairando em cima do rio, suavemente, deixou-se cair até desaparecer, uma massa
de luz afundando-se lentamente nas águas.
“Roubaram o anjo, o anjo já não
está lá. Ladrões, ladrões. Isto está uma desgraça, roubam tudo, estragam tudo.
Eu até rezava aquele anjinho, tão lindo que era, uma pena”. Ninguém soube explicar
o que tinha acontecido à estátua. Muitos lamentaram, que aquele era o seu sítio
favorito em toda a marginal do Douro, o local de muitos amores começados e
muitos amores desatados. Um lugar mágico, diziam as mulheres da zona. “ Íamos
lá, olhávamos para aquela carinha e vínhamos muito melhor para casa”.
A cidade nunca se viria a
conformar com a perda da estátua. Anos depois uma réplica seria ali colocada naquela
curva do rio, a partir de uma cópia em gesso que existia numa casa nobre da
Foz, oferta da artista que idealizara o anjo a uns amigos queridos. Disseram
depois os jornais que aquele novo anjo não tinha o fulgor do outro. Mas a
devoção continuou.»
Este é o capitulo 11, um dos últimos, do
livro Bianca e o Dragão de Beatriz Pacheco Pereira, ed.2006, com 18 ilustrações de Agostinho Santos,que considero verdadeiramente delicioso e que aconselho toda a gente a ler , sobretudo para quem adora o Porto, local onde decorre a acção . Na contra capa diz:
O Porto como cenário, uma Estátua
na marginal do rio Douro, Anjos que visitam a cidade, um Dragão que violenta e
destrói, uma casa na Rua da Restauração, uma Mulher, um Homem. As forças
contraditórias da nossa Humanidade. A Vida, a Morte. E Deus que vigia e se
diverte. Uma história tirada do Fantástico e da Imaginação.
1 comentário:
Uma linda história com certeza escrita com imenso carinho. Gostei imenso e fiquei super encantada com as maravilhas desta postagem!! Tudo de bom para ti,fica bem!!
Enviar um comentário