sexta-feira, 28 de novembro de 2008

PRINCESAS E RAINHAS

É impossível deixar de vos trazer um poema que acho lindíssimo, de um poeta um pouco esquecido, ou talvez pouco valorizado por ter vivido num tempo em que os lobbies gays ainda não tinham o poder que hoje têm.
De espírito exuberante, apaixonado, e sem preconceitos nem pudores, marcou o panorama nacional pelas letras (poemas) incontornáveis das canções que escreveu para o festival da canção.
Ouvi-lo dizer os seus próprios poemas é mais emocionante do que lê-los, porque à força das suas palavras se junta a força da voz, da presença e dos gestos. Porque é mais difícil falar genericamente de uma obra poética do que de uma narrativa, deixo-vos um excerto do longo poema de...

ARY DOS SANTOS

TEMPO da LENDA das AMENDOEIRAS – 1964

Rimance da Princesa do País dos Gelos que em Terras da Moirama Suspirava Contando em Louvor da Fantasia dum Povo que Nasce, Vive e Morre entre o Céu e a Água.

Era uma vez um país
Na ponta do fim do mundo
Onde o mar não tinha eco
Onde o céu não tinha fundo.
Onde longe longe longe
Mais longe que a ventania
Mais longe que a flor de sombra
Ou a flor da maresia
Em sete lagos de pedra
Sete castelos de nuvens
Em sete cristais de gelo
Uma princesa vivia.

A Princesa
Em sete cristais de gelo
Nesse país eu vivia.

Era uma vez um país
Na ponta do fim do mundo
Onde o mar não tinha eco
Onde o céu não tinha fundo.
Onde longe longe longe
Mais longe que a luz do dia
Com a sua coroa de abetos
E seus anéis de silêncio
Suas sandálias de tempo
Seu tear de nostalgia
Uma princesa tecia
O seu tapete de espanto
No fio da fantasia
Do seu casulo de encanto.

A Princesa
O meu tapete de espanto
Num tear de nostalgia.

Era longe longe longe
Mais longe que a luz do dia.

Tinha cabelos de rio
Olhar de brisa serena
Boca de rosa de estio
Vermelha, porém pequena.

Tinha cintura de bruma
Andar de orquídea de neve
Perfume de flor nenhuma
Intensa, porém mas breve.

Em seu corpete bordado
Os seios duros trazia
Virgem de sangue domado
Contida, porém não fria.

Era longe longe longe
Mais longe que a luz do dia.

E enquanto em sete cristais
Sete anémonas de espanto
Enquanto em sete corais
Uma princesa tecia
O seu tapete de espanto
Num tear de nostalgia
Levava-lhe o vento os ais
Por mares ares tormentas
Ondas naufrágios marés
Ilhas iras sons e escolhos
Para longe longe longe
Mais longe que a luz dos olhos.

Levava-lhe o vento os ais
Para uma terra distante
Bordada de laranjais
Vestida de céu brilhante
Onde com sete punhais
sete crescentes de lua
sete pecados mortais
em seus olhos faiscantes
um rei poderoso montava
sete cavalos possantes.

Levava-lhe o vento os ais
Para uma terra distante
Onde o céu era lidado
Na arena da maré cheia.
Terra de cheiro molhado
Terra de cravos de carne
Onde o silêncio escoado
Pelos aromas do nardo
Molhava de mel de sombra
Os lábios secos da tarde.
Levava-lhe o vento os ais
Para uma terra distante
Terra de festas de sangue
Baía de cimitarra
Moiras com olhos de alfange
Onde o amor se matava
Terra terraço mirante
Aonde o mar se mirava
Umbela de flor gigante
Colo moreno de escrava
Terra pantera ondulante
Terra guitarra tocada
Pelo barulho das folhas
Mexendo de madrugada.

Terra distante distante
Onde seus ais repousava.

Ouviu-lhe o rei o suspiro
Quando em seu castelo estava.
Mandou guardar seus cavalos
Suas bandeiras reais
Mandou fechar suas portas
Seus pátios suas janelas
Afogar a horas mortas
Sete pecados mortais
Em suas sete cisternas
E aparelhar um veleiro
Com velas soltas de espuma
Para cruzar sete mares
Sete céus de nevoeiro
Sete procelas de inverno
Sete postigos de bruma
Sete correntes de inferno
Sete cabos de segredos
Sete caminhos de medos
Sete muralhas de fumo
Até encontrar os olhos
Até encontrar os dedos
Do suspiro que o chamava
Da ponta do fim do mundo.
( .................)

O Rei

Fi-la rainha do vento
Rainha da maresia
Sombra do meu pensamento
Pedra da minha magia
Janela do meu palácio
Fresta de melancolia
Por onde passava o sol
Que ao país dos sete gelos
o meu desejo trazia.
Fi-la rainha do sangue
Que em minhas veias corria.
Rainha da ferida aberta
De que o meu povo sofria
Da chaga das descobertas
Que nos seus flancos se abria
Daquelas portas abertas
Onde o mar o fecharia
Daquelas ondas redondas
Onde o sonho o enredaria
Daquelas ilhas desertas
Onde a água o prenderia
E com a adaga dos olhos
O veneno da memória
A distância o marcaria
Para cadáver da história.
Rainha da minha audácia
E da minha cobardia
Dos copos da minha espada
Do punho da minha angústia
Da minha boca molhada
Pela saliva de Agosto
Dos poros da minha pele
Dos cabelos do meu peito
Da pedra do meu anel
E dos lençóis do meu leito

Era rainha a princesa
Que no silêncio dormia
Ungida pelo desejo
Coroada pelo agrado
Dum rei moiro que bebia
Pela chaga do seu lado
Em vez de cidra macia
Sangue de virgem sagrado.
Era rainha a princesa
E o seu reino consumado.

E depois de sete luas
De sete noites de chama
De sete donzelas nuas
Ardendo na sua cama
Levou o rei a princesa
Num carro de labaredas
Por montes vales caminhos
Serras atalhos veredas
Tergos cerros e devezas
Para longe longe longe
Mais longe que a tristeza.
(...................)

Passei-vos oito páginas deste poema. Ele prolonga-se por mais dezanove páginas. Espero que vos tenha aguçado o apetite para lerem este e os outros poemas que podem encontrar no livro José Carlos Ary dos Santos, obra poética, das edições Avante.

3 comentários:

ameixa seca disse...

Ele é tão imenso, intenso, humano, real... que não morrerá nunca! Agrada-me saber que permanece a sua obra. Se eu fosse poeta gostava de ser como ele... a coragem de dizer a verdade, de reagir e de lutar :)

Noémia disse...

Tens razão, Ameixinha, não morrerá nunca se continuarmos a gostar dele e a divulgar a sua obra! :)

Anónimo disse...

Muito lindo, muito rico. Obrigada partilhar esta beleza.
Miriam